Ontem a noite, o espaço cultural Fêmea Fábrica promoveu uma sessão de modelo vivo aberta no centro de Campinas, com mediação da artista e arte-educadora Giselle Freitas. Quem posou foi a Carolina Gasquez, artista do corpo, educadora e pesquisadora da dança. Por coincidência, ela foi a primeira pessoa que desenhei numa sessão ao vivo, em setembro de 2019. Antes disso, eu já tinha praticado com versões online – provavelmente com o QuickPoses . Mas é uma experiência bem diferente, claro, alguém caminhar nua numa sala cheia de gente e ser retratada simultaneamente por todos eles.

Desenho gestual

Sessões de modelo vivo são oferecidas normalmente para artistas/estudantes praticarem Desenho Gestual. O desenho gestual é uma prática de estudo da figura humana em movimento. Existem técnicas bem tradicionais de como fazer esses estudos, mas em sessões abertas como essas que eu participei, cada um é livre pra seguir com seu estilo e mídias favoritas. De 2019 pra cá, já testei alguns materiais clássicos – como pastel seco e carvão – mas sigo preferindo lápis de cor multicoloridos, como esses da Koh-i-noor:

Um vermelho supersoft (Faber Castell escolar) com meus dois lápis de minas coloridas

O lápis mais largo é um Lápis Jumbo Koh-I-Noor “Magic Multicolor” da cor Fire, que eu tenho sei lá, desde 2015, pelo menos. O mais fininho é da mesma marca, mas as cores da mina são do tipo “original”. Queria um Tropical pra fazer urban sketches, mas nunca mais encontrei avulso pra comprar.

Aliás, escrevendo este post, descobri que a Faber tem uma linha de pontas multicoloridas também, chama “Misturinha”.

Como funciona?

As sessões duram cerca de 2h, mas o evento em si costuma se estender um pouco após os desenhos propriamente ditos. Costumamos cumprimentar o(a) modelo(a) antes dele(a) se despir. Normalmente o espaço é organizado com os artistas em círculo ou semi círculo ao redor de uma área central, bem iluminada. Esta área costuma contar com uma cadeira, sofá ou outra superfície para poses horizontais. As luzes ficam baixas ou apagadas, e o foco luminoso fica onde o(a) modelo está.

As sessões costumam ser muito respeitosas e silenciosas. Apenas uma trilha sonora (escolhida pela pessoa que posa, normalmente) e o barulho do timer costumam interromper o fluxo de desenhos.

A pessoa que posa costuma escolher uma posição, e se mantém nela por tempos pré-determinados. A pessoa que está mediando a sessão controla o tempo com um temporizador e avisa aos demais quanto tempo irá durar cada pose.

É comum começar com algumas poses de aquecimento, com 1 ou 2 minutos de duração.

Na sessão de ontem, elas já começaram com duas poses de 5 minutos, e uma de 10 minutos:

primeira pose, de 5 minutos

Eu costumo correr a silhueta da pose com o lápis jumbo, de forma rápida e com traços leves, tentando delinear as proporções e orientação geral. Depois volto com um lápis colorido (de cor única, como o vermelho abaixo) e passo a reforçar os contornos, em traços mais pesados, firmando as decisões anteriores ou adicionando pequenos detalhes. Também marco os volumes maiores dos músculos com hachuras. Pego outra cor para marcar o cabelo (fiquei fazendo testes pra ver se gostava mais dos cabelos marcados de cor única ou com o lápis multicolorido fino – que faz tons de verdes e azuis). Rabisco a superfície de contato que ancora a modelo no espaço (nos dois primeiros, este zigue-zague ao redor dos pés).

segunda pose, de 5 minutos, acima, e terceira de 10 minutos abaixo

Depois, uso um lápis mais escuro pra reforçar as sombras. Nesta sessão, eu foquei em testar fazer as sombras fortes que deixassem mais claro que a Carol estava apoiada em grandes almofadas.

pose mais longa, de 15min

Quanto mais tempo de pose, mais eu tento me comprometer com detalhes anatômicos. E costumo deixar o rosto por último, porque o foco é mais no gestual e na expressão do resto do corpo. Neste aqui, eu inclusive fiquei bem frustrada com o rosto, porque não ficou nada parecida com ela. Note que nos próximos dois, eu fiquei um pouco obcecada com isso.

alguns detalhes do desenho anterior

Eu estava ficando incomodada por não estar conseguindo acertar o nariz nem o corte de cabelo super repicado da Carol.
Nesta pose, eu tentei sombrear com um pouco mais de minúcia algumas partes do corpo, ao invés de só colocar hachuras soltas. E tentei mostrar que a superfície (colchão) se moldava ao peso da modelo sentada. No fim, acabei esquecendo das mãos, que foram adicionadas sem muito cuidado. E como o rosto ficou muito escuro, acabei fincando a ponta de um lápis mais escuro pra tentar só acentuar o perfil do olho. Ficou menos parecido ainda com a Carol..

a diretora de arte disse que ela parece a Harley Quiin aqui
duas últimas poses da sessão: 10 e 15min

Continuei tentando detalhar o rosto. Nesta folha, abandonei o azul cobalto saturado, e peguei um cinza-azulado mais tendendo ao indigo.

foquei 10 min em tentar representar só a cabeça. Sucesso médio.
neste aqui, eu já estava cansada de errar, e quis então focar meu esforço nos volumes ao redor da área focal da base dos seios. Espalhei a pose pela página aberta do caderno e fui aplicando mais cores nos contornos do que dentro do corpo propriamente dito.

Serei perseguida pra sempre por essas hachuras mal feitas que coloquei no seio da frente, que não seguem o caminho da luz. Mas quando a gente vê a figura como um todo, não chama taaanta atenção assim.

Enfim. Lembra que comentei que depois dos desenhos, a sessão se estende um pouco?

É a hora da mini exibição de artes produzidas:

Parte dos artistas conversando sobre a experiência

Sempre nesta hora eu me lembro que preciso levar folhas soltas pras sessões de modelo vivo, e não o sketchbook… e de não fazer os desenhos em frente e verso nas páginas, porque senão não tem como exibir no final.. O que certamente vou esquecer, na próxima.

Assim como nos encontros de Urban Sketching, é super divertido ver o conjunto e reparar nas soluções tão diferentes que as pessoas pensaram pra mesma situação que você.

Galeria do dia

Figuary

Houveram rumores ontem de que a Fêmea Fábrica talvez passe a ter sessões mensais de modelo vivo em 2025. E que a próxima será na segunda semana de fevereiro. Seja como for, em fevereiro, no universo dos artistas cronicamente online, acontece o evento chamado Figuary – trocadilho com February – um mês pra se desafiar desenhando a figura humana. Sempre indico ver o conteúdo do Croquis Cafe para guias de estudo e pose – antigamente, a maior parte do material era gratuito, os mais recentes são pagos, e provavelmente vale muito a pena. Quem sabe tento fazer alguns estudos no próximo mês?

Ah, aqui tem uma coletânea de sessões ao vivo que já participei (repare que a primeira, com folhas de espada-de-são-jorge, são desenhos da mesma modelo desta postagem!)

Programação de evento:

Corpo-padrão da ciência:

Detecção de HPV em câncer de orofaringe:

Divulgação: Soldadinho Defensor

Dia mundial sem tabaco:

Divulgação de texto na Revista Blogs Unicamp

Paleta de cores e acessibilidade visual

Vamos falar de alguns termos que são praticamente o “arroz com feijão” no nosso dia a dia com projetos de ilustração. Esse glossário da ilustração é para quem quer entender (e até usar) a nossa linguagem.

  1. Briefing: O ponto de partida. É o documento ou conversa que define o conceito, as necessidades e os objetivos do projeto. Sem um briefing claro, é impossível criar algo que atenda às expectativas.
  2. Alterações: Ajustes feitos após o feedback do cliente ou da equipe. É natural, faz parte, mas um bom briefing ajuda a minimizar mudanças desnecessárias.
  3. Cessão de uso: É o contrato que especifica como e onde a arte pode ser usada. A ilustração pode ser cedida de forma exclusiva ou para uso limitado.
  4. Arte final: A versão definitiva da figura. Todas as linhas, formas, cores e efeitos estão alinhados e prontos para entrega ou publicação.
  5. Composição: A organização dos elementos visuais na imagem. É o que faz uma figura ser clara, equilibrada e funcional.
  6. Arte vetorial: Imagens criadas a partir de formas geométricas e matemáticas, que podem ser escaladas sem perder qualidade. Perfeitas para logotipos e infográficos.
  7. Arte rasterizada (mapa de bits): Imagens baseadas em pixels, como fotos. Elas têm uma resolução fixa e podem perder qualidade ao serem ampliadas.
  8. Estilização: As escolhas visuais que dão “personalidade” à arte, como simplificar formas ou exagerar características.
  9. Resolução: Medida de qualidade da imagem, geralmente em DPI (pontos por polegada). Mais resolução = mais nitidez, mas também mais peso no arquivo.
  10. Lineart: O “esqueleto” da arte. São as linhas que definem a estrutura inicial da ilustração antes de adicionar cor e outros acabamentos.

Pronto! Um glossário prático para quem quer navegar no mundo da ilustração científica (ou pelo menos parecer que entende 😉).

Hoje vamos falar um pouco sobre as ferramentas para criação de artes digitais. Se você ainda pensa em pranchas amareladas e feitas à mão quando ouve “ilustração científica”, vem comigo conversar sobre ilustração científica digital!

Arte digital

A era da comunicação digital tem moldado nossa sociedade de maneiras profundas. Além disso, a ascensão das redes sociais e o consumo crescente de conteúdo audiovisual são características marcantes dessa era. Nesse contexto, a habilidade de criar e compartilhar imagens tornou-se essencial, tanto para grandes corporações e instituições, quanto para meros mortais, como nós. Gradualmente, estamos vendo a esta habilidade se tornar quase um pré-requisito para a integração do indivíduo na cultura e na sociedade.

Apesar de a criação digital de imagens e arte no geral de não ser nada recente, a oferta de cursos de ilustração científica digital ainda não chegou nos principais núcleos de ilustração científica brasileiros. Mas vemos já há pelo menos três décadas que a tecnologia tem sido incorporada na ilustração científica, transformando a forma como representamos e compreendemos o mundo científico!

Toda a Visualização de Dados (DataViz) também se aprimorou como campo de trabalho e estudo a partir do surgimento e ampliação do acesso a ferramentas de criação de imagens digitais. Os programas são vários: Adobe Photoshop (lançado em 1988), Adobe Illustrator (lançado em 1987), Inkscape (lançado em 2003), CorelDraw (lançado em 1989), e, mais recentemente, o Procreate. Sem mencionar o clássico Microsoft PowerPoint e o Google Apresentações, que permitem a criação de vetores e algum grau de manipulação de imagens.

Bancos de figuras científicas digitais

Além disso, os acervos de imagens e edição online que permitem a criação de imagens para não-ilustradores e não-designers não param de surgir. Veja alguns exemplos:

Acervos com recursos específicos para figuras científicas: 
  • BioRender (2018)  é uma plataforma que oferece ícones e templates voltados para pesquisadores e cientistas. O acervo é frequentemente atualizado sob demanda dos assinantes.
  • Simplified Science (2015) Fundada por Karen Thiebes, traz imagens vetoriais de uso aberto e permite customização, sem atribuição de autoria. 
  • MindtheGraph (2015) é uma plataforma online de design gráfico dedicada especificamente à criação de ilustrações científicas. Fornecendo ferramentas e recursos para que cientistas e pesquisadores possam criar suas próprias representações visuais de dados complexos e conceitos abstratos.
  • SciDraw (2019?) é um repositório de imagens com amplo repertório de imagens úteis para pesquisa experimental. As imagens são vetoriais e de uso livre e gratuito, com licenças de uso Creative Commons. Guia de uso: SciDrawGuide.pdf (nd.edu)
Acervos com recursos variados, que incluem elementos científicos (de 2022 em diante, principalmente): 
  • Canva (2012) é uma ferramenta de design gráfico online, simples e fácil de usar. Permite que você crie uma variedade de conteúdos, incluindo ilustrações científicas. Com uma biblioteca extensa de imagens, ícones e fontes, Canva é uma escolha popular entre cientistas e ilustradores.
  • Freepik (2010) é uma plataforma digital que oferece recursos gráficos de alta qualidade para designers e criativos. Com milhões de fotos, vetores e ilustrações disponíveis, seu acervo traz cada vez mais elementos de ilustração cientificamente corretas. Seu futuro parece promissor, com atualizações constantes e a adição de novos recursos.
  • Wikimedia Commons (2004) – é uma plataforma de mídia que permite a todos os usuários, incluindo ilustradores científicos, compartilhar, usar e remixar imagens e outros tipos de mídia. Desde o seu lançamento, tem sido uma ferramenta valiosa para a comunidade científica, possibilitando a disseminação de ilustrações científicas de maneira abrangente e acessível.

Então qualquer um pode fazer?

Enquanto abre novas possibilidades para animações e interatividade, o acesso a algumas ferramentas de criação de imagens por cientistas e pesquisadores faz parecer, para uma parcela deste público, que o trabalho intelectual e experiência dos ilustradores seja dispensável. Como nós podemos nos adaptar a essa mudança?

Eu particularmente acho maravilhoso que existam tantas opções de elementos visuais do universo científico disponível. E acho um recurso muito valioso para ilustradores e designers científicos iniciantes. A ciência precisa ser comunicada, e se pensarmos como comunidade, quanto maior a qualidade e efetividade dessa comunicação, melhor!

Além disso, existem muito menos profissionais ilustrando do que cientistas e pesquisadores publicando. Mas, acima de tudo, ter acesso a figuras não é garantia de uma peça final bem feita. O conhecimento de composição e equilíbrio dos elementos visuais não se adquire do dia para a noite. A melhor forma de se adaptar é mostrar que essas habilidades não são triviais. Veja abaixo a diferença que faz produzir uma figura com um profissional que sabe aplicar os fundamentos de design:

Alt Text: Comparação visual de duas representações esquemáticas de um espermatozoide em ilustração científica. À esquerda, a versão “Before” apresenta uma paleta de cores saturadas e detalhamento complexo, destacando canais iônicos (Hv1 e CatSper) na peça principal, com setas indicando extrusão de H+ e influxo de Ca²+, além de fatores como despolarização e remoção de Zn²+. À direita, a versão “After” adota uma abordagem mais simplificada e limpa, com tons pastéis, apresentando um esquema de ativação do Hv1 que eleva o pH e resulta em hipermotilidade. Inclui um zoom com comparações de espermatozoides em estados “Motile” e “Hypermotile”.
De: Cell Press Graphical Abstract Guidelines

Carreira possível

Por último, vale lembrar que as empresas como Biorender e Mind the Graph oferecem vagas de emprego para ilustradores, e criar conteúdo para os bancos de imagens pagos é sempre uma possível fonte de renda para profissionais independentes.

Vídeo: Oportunidades de carreira na Biorender (2021)

Vaga: Ilustrador médico na Biorender (Jan 2025)

Descrição: We are actively seeking a full-time Medical Illustrator to join our mission-driven, fast-growing company to help scientists around the world create and share beautiful, professional scientific figures.

We’re looking for a self-starter with a strong illustration portfolio who is eager to learn and grow professionally. You will develop high-quality biomedical graphics, figures and other science communication media relevant to scientists globally. Additionally, you will collaborate directly with scientists on high impact content projects and professional services. You will also provide support for our exciting app/product development as well as growth/marketing endeavors. All in all, you will help build the world’s best scientific content library alongside an award-winning biomedical illustration/design team (including alumni from Johns Hopkins, University of Toronto, National Geographic Magazine, and more).

Hoje, 2 de julho de 2024, alguns dias após o término do prazo para que brasileiros optassem por não ter seus dados utilizados para o treinamento de IAs, conforme a nova política de privacidade da Meta, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) determinou uma medida preventiva que suspende o uso de dados de usuários para essa finalidade.

A medida estipula um prazo de cinco dias úteis para que essa suspensão seja implementada. A Meta deverá reescrever a seção correspondente de sua política de privacidade e apresentar documentação que comprove a suspensão do uso dos dados para tal finalidade.

Saiba mais nas matérias:

https://nucleo.jor.br/reportagem/2024-07-02-meta-colocou-dados-de-brasileiros-em-risco-para-treinar-ia

https://www.aosfatos.org/bipe/anpd-meta-dados-brasileiros-ia

Uma boa notícia e exemplo de por quê as big techs não querem regulação

Além de uma boa notícia, este é um bom exemplo de como as regulamentações podem beneficiar nossos direitos.

Justamente por isso, o Projeto de Lei nº 2.338/2023 (que tramita com os Projetos de Lei nº 5.051/2019, nº 21/2020 e nº 872/2021) é alvo de manobras para que a proposta legislativa seja atravancada. O Intercept Brasil tem publicado sobre o assunto nas redes (por exemplo, aqui). Uma manobra pouco repercutida nos meus círculos foi a do dia 26/06/2024, quando um despacho desmembrou as discussões sobre IA que tramitavam em conjunto:

A Presidência determina, nos termos do artigo 48, §1º, do Regimento Interno, e em atendimento aos Requerimentos nºs 472 e 473, de 2024, do Senador Chico Rodrigues, o desapensamento dos Projetos de Lei nºs 145 e 146, de 2024, que passarão a tramitar em separado, de forma autônoma, aos Projetos de Lei nºs 5051/2019, 5691/2019, 21/2020, 872/2021, 2338/2023, 3592/2023, 210/2024 e 266/2024.
Os Projetos de Lei nºs 5051/2019, 5691/2019, 21/2020, 872/2021, 2338/2023, 3592/2023, 210/2024 e 266/2024 continuam a tramitar em conjunto e retornam à Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA) para prosseguimento da tramitação

Tenho desde então acompanhado as audiências públicas promovidas pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA) como parte das atividades da UNIDAD – União Democrática de Artistas Digitais.

Na primeira audiência, sobraram lobistas disfarçados – representantes da Meta e de organizações que têm como associadas iFood, IBM, Microsoft, Amazon e Google cadastrados com filiações diferentes das que realmente se aplicam aos seus cargos atuais.

Na audiência pública de hoje (02/07), os convidados incluíram representantes do Observatório Nacional de Cibersegurança, a Universidade Federal de Minas Gerais, Repórteres sem Fronteiras, Transparência Brasil, Coalizão Direitos na Rede, Federação das Associações das Empresas Brasileiras de TI, USP, CUT Nacional, e Conexis Brasil Digital.

Resumindo extremamente, as entidades e grupos que defendem direitos da sociedade civil vêem a proposta legislativa atual com bons olhos (no mínimo, com menos críticas, pois pontos sensíveis como a permissão de armas autônomas foram contempladas com emendas que as proíbem). Já os demais atores indicam que a regulamentação é desnecessária, pesada demais, e potencialmente prejudicial para a inovação tecnológica no país.

Vale lembrar que a direita afirma que PL 2.338/23 poderia permitir censura nas redes sociais, pois os algoritmos das plataformas contêm inteligência artificial.

Próxima Audiência:

Quarta, 03/07/24: Uso, supervisão e fiscalização da Inteligência Artificial (PL 2338/2023)

A Meta lançou na quinta-feira passada (23/05/24) a sua mais recente Política de Privacidade, atualizando seus Termos de Serviços. Esta nova política estará valendo a partir de 26 de junho de 2024.

Nos novos Termos, de forma mais clara do que antes, ficamos sabendo que qualquer conteúdo publicado (publicamente) nas redes da empresa (Instagram, Facebook, Threads) podem ser usados para o treinamento de IAs generativas da Meta. Ou seja, nossas fotos, vídeos, legendas, texto das publicações, comentários e outros dados gerados pelo usuário são usados como recurso para treinar ou aprimorar os sistemas generativos de IA da empresa.

A empresa usar nossos dados pra treinar IAs, na verdade, não é novidade. Em setembro do ano passado, alguns portais de notícias e tecnologia já mencionavam que era possível recusar o uso dos seus dados pessoais para treinamento de IAs no formulário “Direitos do titular dos dados de IA generativa“, mas só os dados que estivessem presentes em materiais de terceiros. Na época, a Meta admitiu publicamente que usou conteúdos públicos do Facebook e do Instagram para treinar seu novo assistente virtual, o chatbot Meta AI. Mas seja nesta ocasião ou agora, as fontes para treinar modelos de IA da empresa vem também “incluem informações disponíveis publicamente e dados licenciados na internet”.

Em fevereiro deste ano, o Zuckerberg declarou publicamente sua satisfação em saber que as redes de sua empresa reúnem centenas de bilhões de imagens compartilhadas publicamente e dezenas de bilhões de vídeos públicos, além de um grande número de postagens de texto e comentários públicos em seus serviços. Isso supera, segundo estimativas, o dataset Common Crawl, banco de dados aberto utilizado para treinar grandes modelos de linguagem. Ou seja, uma mina de ouro em termos de dados.

Por que o uso dos nossos dados é um problema?

Para artistas visuais e demais criadores de conteúdo, é um pouco óbvio: nossa produção está sujeita a ser plagiada e canibalizada por uma tecnologia ainda insuficientemente compreendida e discutida. Para a comunidade artística como um todo isso é mais do que uma discussão hipotética: o uso de IA generativa está roubando empregos e oportunidades de trabalho em vários setores do mercado.

Há pouco tempo, três outras plataformas amplamente utilizadas – o Artstation, deviantART permitiram que o conteúdo protegido por direitos autorais postado por usuários em seus portfólios fosse usado para o treinamento de para o OpenAI, Stability, and Midjourney (outra referência aqui). Existe um processo em andamento sobre a violação dos direitos e apropriação indébita de milhares de milhões de imagens para treino de IA. Desta disputa, emerge a síntese que você pode já ter visto por aí:

Esta mudança de política de uso de dados é um lembrete de que precisamos estar vigilantes sobre os termos de condições das plataformas onde nosso trabalho está hospedado. Que nossa atividade pra se conectar com outras pessoas pode ser retorcida em produtos que mal podemos prever ou antecipar.

E isso é um problema só para artistas?

Gosto de reforçar que esta não é nem deveria ser uma questão exclusiva para quem vive de conteúdo intelectual protegido.

Você se sente confortável sabendo que uma postagem sobre seu sobrinho fazendo aniversário pode ser referência para um texto gerado por IA, interagindo com outras pessoas no futuro? Ou que vai ser cada vez mais difícil diferenciar se uma interação nas redes foi escrita por humano ou por uma IA?

De todo modo, o nosso direito à privacidade dos dados pessoais e ao consentimento está sob ameaça. Nós podemos até discordar que as redes usem nossas informações como quiserem, mas é extremamente difícil garantir isso: estar presente nas redes já implica em concordar com os Termos de Uso. Não existe a opção “concordar em partes”. E na prática, assim que os termos atuais estiverem vigentes, você está autorizando que suas postagens sejam usadas para o treinamento de IAs. Quer discordar? Exclua sua conta. Não há meio-termo.

Em abril de 24, com o lançamento oficial da IA da meta em alguns países, e exigências da justiça norte americana devido à eleição presidencial que se aproxima, o assunto voltou à tona. Mas muito antes disso, infelizmente, nós concordamos (involuntariamente) com o uso quase irrestrito de nossas postagens (vide o slide 37no link).

Atualmente, os novos Termos de Serviço da Meta dizem:

3. As permissões que você nos concede

Especificamente, quando você compartilha, publica ou carrega conteúdo protegido por direitos de propriedade intelectual nos nossos Produtos ou a eles relacionados, você nos concede uma licença não exclusiva, transferível, sublicenciável, isenta de royalties e válida mundialmente para hospedar, usar, distribuir, modificar, veicular, copiar, reproduzir publicamente ou exibir e traduzir seu conteúdo, assim como criar trabalhos derivados dele, (de modo consistente com suas configurações de privacidade e do aplicativo). Isso significa, por exemplo, que se você compartilhar uma foto no Facebook, você nos dará permissão para armazenar, copiar e compartilhar a foto com outras pessoas (novamente, em conformidade com suas configurações), como os Produtos da Meta ou provedores de serviços que oferecem suporte a tais produtos e serviços. Quando seu conteúdo é excluído dos nossos sistemas, essa licença é encerrada.

Alvoroço nas redes

Diante do anúncio dos novos Termos de Uso, a comunidade artística internacional está se mobilizando para alertar as pessoas e procurando meios de proteger sua produção.

Esta postagem do Kostas K resume meus sentimentos:

O que mudou agora?

Os termos atualizados deixam claro que nossas postagens públicas podem ser usadas para treinar IAs. Antes, só reforçando, os termos eram vagos e só deixavam claro a permissão dada aos serviços de terceiros (A Licença IP que está vigente atualmente não esclarece os usos acima). Agora também podemos, teoricamente, optar por negar o uso das nossas publicações – num formulário obscuro difícil de encontrar, e burocrático pra preencher – que protege apenas as postagens feitas após a solicitação de bloqueio.

Lembrando também, que em setembro de 2023, já haviam notícias sobre o uso da Meta quanto a usar postagens públicas do Facebook e Instagram para treinar seu novo assistente de IA, como mencionado acima.

A pergunta que fica é a seguinte:

Adianta apagar minhas postagens antigas para proteger meu conteúdo?

Os termos de uso atuais deixam alguma margem para entender que sim, pois teoricamente a tal “Licença IP” (válida atualmente, em 01 de junho de 2024) se encerra a partir do momento que vc apaga o conteúdo. Mas:

Quando você exclui um conteúdo IP, ele é removido de maneira similar ao esvaziamento da lixeira do computador. No entanto, entenda que o conteúdo removido pode permanecer em cópias de backup por um período razoável (mas não estará disponível para outros).

*conteúdo IP, no documento, se refere a imagens e vídeos.

Na atualização, eles seguem afirmando que a Licença que cedemos à Meta se encerra a partir da exclusão do nosso conteúdo ou conta, mas que os nossos dados ficam ainda armazenados por 90 dias após a exclusão.

Por outro lado, nossos dados públicos estão sendo usados no mínimo há pelo menos 9 meses para fins de treinamento de IA. Me parece pouco provável que a esta altura, adiante excluir publicações antigas – elas podem já ter sido usadas sem nossa permissão (e ciência).

ARTISTAS

O que podemos fazer, em nível individual?

Antes de mais nada, recuse o uso dos seus dados para treinar IAs: preencha o formulário Oposição quanto ao uso das suas informações para a IA na Meta

  • Em “Conte-nos como esse processamento afeta você.”, você pode mencionar que isto viola a sua privacidade e os seus direitos como utilizador, e citar como argumento a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
  • Ou ainda, escrever simplesmente como orienta a Nina: “tenho direitos autorais sobre todas as publicações no meu perfil, portanto, não autorizo a empresa Meta ou qualquer outra que as utilizem” (comigo funcionou)

Edite suas imagens ANTES DE PUBLICAR online, com o Glaze ou com o Nightshade. Estes softwares adicionam ruído digital ou prejudicam a leitura das imagens por IAs, o que impede que elas sejam usadas para o treinamento de ferramentas generativas.

Boicote a Meta: Segunda-feira, dia 03 de junho de 2024, artistas ao redor do mundo estão combinando um boicote às redes da Meta (que consiste em não acessar nenhum de seus serviços – Threads, Instagram, Facebook, Whatsapp) por 24h.

Mude-se para outra rede social: Também estamos vendo um movimento de artistas e criadores para migrar para a rede Cara – uma plataforma de portfólio e rede social para artistas, que promete proteção à propriedade intelectual e se manter livre de arte gerada por IA. Por enquanto, a plataforma é instável e cheia de erros. E já vimos este tipo de movimento antes, com o Twitter.

Adicione um selo “Feito por Humano”: fica claro para humanos que sua imagem/texto não foi criada por IA: (baixe aqui)

Medidas individuais são quase inócuas

Mas isso é muito pouco, na minha opinião. Não me interessa proteger apenas a minha prioridade intelectual.

Eu quero ver as redes sendo reguladas. Quero garantias de que a privacidade de dados de todos é respeitada.

Precisamos de menos IAs nas redes, antes que a internet vire um grande cemitério de mentes humanas.

Vale lembrar que só estamos vendo este alvoroço em relação ao uso abusivo de nossos dados nas redes da Meta graças à GDPR (General Data Protection Regulation) europeia.

Como assim? A GDPR do Reino Unido e União Europeia obriga as redes sociais a informarem seus usuários sobre a coleta e uso de seus dados. Então, usuários do Instagram/Facebook/Threads destas regiões passaram a receber emails com os detalhes da atualização da política de privacidade e receberam a opção de exclusão, em conformidade com a GDPR. Ou seja, o assunto só veio a público de forma menos ambígua graças à uma Política Pública mediada por instâncias governamentais. É por isso que é tão crucial que as Redes Sociais estejam sujeitas a regulamentação dos Estados.

Em tempo: as leis brasileiras da LGPD também nos protegem, e o formulário de objeção do uso de nossos dados para treinamento de IA está disponível para o Brasil justamente por isso. Só temos acesso ao formulário obscuro por isso. Leia o trecho abaixo, da notícia “Como a Meta está desenvolvendo a Inteligência Artificial para o Brasil” nos materiais de imprensa:

Com base nas leis locais do Brasil, você poderá se opor ao uso de suas informações de nossos produtos e serviços para desenvolver e melhorar a inteligência artificial da Meta. O formulário de objeção pode ser encontrado na nossa Central de Privacidade. Essa abordagem é consistente com a nossa atuação e com a forma como outras empresas de tecnologia estão desenvolvendo e melhorando as suas experiências de IA.

Referências

Leia também:

“Marco Legal da Inteligência Artificial” – Projeto de Lei n° 2338, de 2023

Este acervo foi criado pensando em dar um destino ético para imagens produzidas, em sua origem, a partir de peças de artistas que não consentiram com sua utilização para o treinamento dos modelos de linguagem.

Pretende-se criar aqui uma pequena biblioteca de PNGs (fundo transparente) de cientistas de pele escura, para uso livre.

Inicialmente, vou subir mais imagens “caricatas” de cientista, usando jaleco e trajes formais, mas com o tempo pretendo expandir o acervo para outras representações.

Também estou estudando como escrever prompts para gerar imagens de PcDs e pessoas mais velhas, ou simplesmente com variedade de corpos e traços faciais.

Use essas figuras para povoar o imaginário das redes com não-brancas ocupando o papel de cientistas e profissionais da saúde!
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